Propósito, a base do trabalho pedagógico
Muitas vezes, preocupados com o cumprimento do cronograma, nós, professores, acabamos esquecendo algo que deveria ser a base de todo o trabalho pedagógico: cada aula deve ter um propósito claro. Para atingir esse propósito, talvez seja necessário diminuir o peso que damos ao calendário. Vou exemplificar com uma história que aconteceu comigo.
Um caso real
Em 2010, eu era professor de Língua Portuguesa no Ensino Fundamental de um colégio particular de Bragança Paulista. Em uma aula para o 7º ano, a proposta era mostrar a importância do interlocutor no gênero carta argumentativa. Basicamente, eu queria que os alunos entendessem que, para fazer uma boa carta argumentativa, era necessário criar argumentos específicos para o interlocutor de cada carta. Eles tinham que identificar quem era a pessoa que iria receber a carta e explorar ao máximo as características daquela pessoa. Expliquei o conceito. Alguma dúvida? — nenhuma. Até aí, tudo normal.
Pedi uma tarefa, para ser entregue dali a dois dias: cada aluno deveria escrever duas cartas, uma direcionada a George W. Bush e outra a Saddam Hussein. Ambas deveriam ter o mesmo propósito, que era de persuadir o interlocutor a assinar um acordo de paz, encerrando, dessa forma, a Guerra do Iraque. Dei um pequeno texto para eles, contextualizando o conflito, e fui para casa imaginando que receberia várias cartas com níveis variados de qualidade, mas todas cumprindo a proposta básica, que era explorar características do Bush e do Saddam.
Dois dias depois, quando recebi as cartas, o resultado estava muito abaixo do que eu esperava. Pra começar, os argumentos usados nas duas cartas eram sempre os mesmos: os alunos desconsideraram totalmente as características de seus interlocutores. Como se não bastasse, usaram argumentos do senso comum, como “guerra não leva a nada” e “pense nas criancinhas”. Fiquei chateado, mas, em vez de esquecer o assunto e seguir para o próximo tópico, resolvi usar mais um tempo nesse ponto. Afinal, o resultado das cartas mostrou que o conceito não estava claro, nem mesmo para os alunos com melhor desempenho.
A atividade não atingiu o propósito. E agora?
Decidi não entregar as redações: em vez disso, falei que elas estavam muito ruins e todas tirariam zero. Falei também que, para substituir a nota desse texto, eles teriam que fazer uma prova, na semana seguinte. Expliquei que a prova seria em latim, com 17 páginas, e cobraria três livros, que deveriam ser lidos e memorizados em uma semana. Os livros eram Moby Dick, O Senhor dos Anéis e a Bíblia. Disse também que a prova teria um peso gigantesco, de forma que quem tivesse um resultado ruim iria ficar automaticamente de recuperação pelo resto do Ensino Fundamental.
Os alunos disseram que eu devia estar brincando, mas, como eu mantive um semblante sério, acabaram ficando com medo. Alguns ameaçaram chorar. Então, eu prometi que eles teriam uma última oportunidade: poderiam escrever uma carta argumentativa, direcionada a mim, tentado me persuadir a desistir da prova. Dei a eles dois dias para escrever a carta e esperei.
O resultado foi muito superior à primeira tentativa. Os argumentos foram muito mais claros e o planejamento de cada texto ficou evidente. Alguns argumentaram coisas como “professor, se o senhor der uma prova muito longa, vai passar todo o fim de semana corrigindo e não vai poder jogar videogame”. Ou seja, essas pessoas souberam explorar uma característica minha, provando que entenderam a importância de adequar os argumentos ao interlocutor. Como as cartas melhoraram bastante, eu acabei desistindo da prova e pudemos seguir o conteúdo como planejado.
Propósito ou cronograma: o que vale mais?
A conclusão dessa experiência é simples: se eu tivesse deixado de lado o propósito da aula e focado apenas o cumprimento de um cronograma, meus alunos não saberiam como utilizar o interlocutor ao elaborar cartas argumentativas. Eu estaria mais “em dia”, mas qual seria a utilidade disso, se o propósito da aula simplesmente não foi alcançado? Acredito que essa é uma pergunta que nós, professores, devemos nos fazer frequentemente: qual é meu propósito ao preparar esta aula? Ele foi atingido? Ou é preciso mudar a estratégia? Pensando dessa forma, e não apenas em termos de respeitar a ordem dos tópicos, nossa atividade tende a fazer muito mais sentido.